¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 05, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XIX)


Andei mais tarde por Berlim Oriental e contei o que vi em minha coluna na extinta Folha da Manhã. Manifestei minha perplexidade ante o muro, de sinistra memória. Tentei traduzir ao leitor o ar fedorento que se respirava, mal se saía da outra Alemanha. O medo estampado nos rostos, olhares sem esperança alguma, por toda parte cinzento e desolação. Soube que uma alta instância do PC gaúcho queixou-se na Rua da Praia, de que era um absurdo a Caldas Júnior estar publicando aquilo tudo, particularmente por uma razão: eu estava observando os fatos in loco, e portanto falava com autoridade. Até hoje meus amigos preferem não declinar-me o nome deste senhor.

Em 1985, o especialista por excelência em Assuntos para a (ex) Alemanha Oriental nas Letras Jurídicas Gaúchas, o Dr. Antonio Pinheiro Machado Netto, ilustre membro da Ordem dos Advogados do Brasil, ousou publicar pela L&PM uma plaquete intitulada O Muro de Berlim: muro da vergonha ou da paz?, onde assegurava que só existia uma possibilidade de união entre as duas Alemanhas: ela ocorrerá, dizia o arguto analista, quando a Alemanha Ocidental for também socialista. E ainda posava de defensor dos direitos humanos.

Dizer que a minha ou a nossa geração era marxista, fale-se de Rio Grande do Sul ou Brasil, América Latina ou Europa, é pecar por omissão. O século XX todo foi marxista. Morto o deus cristão, os órfãos europeus criaram um deus laico, Stalin. Os mais ativos escritores, desde um Gorki ou Maiakovski, a um Brecht ou Sartre, se tornaram arautos ou cúmplices da nova religião. Pois o marxismo foi religião. A fé dos crentes o confirma: sempre definiram como paraíso o que desde 1917 foi um inferno. Tornam-se então compreensíveis as lamúrias de meu desolado amigo. Ele confundia geração com marxismo. Com a derrocada da União Soviética, deduziu que sua geração havia fracassado. Quando na verdade o que afundou foi a mais longa e cruel tirania exercida sobre dezenas de nações durante décadas do século passado.

Se europeus cultos e viajados, como um Sartre ou Kazantzakis, irmãos Webb ou Aragon, se deixaram embalar pela miragem soviética, a ninguém surpreende que os intelectuais de Pindorama - sempre duas ou três décadas a reboque dos modismos europeus - tenham enveredado por esta trilha de muares. Primo inter pares, Jorge Amado, que após editar páginas do jornal nazista Meio-Dia, intuindo que este tipo de fascismo não tinha futuro sequer a curto prazo, jogou suas moedas no stalinismo. A aposta foi oportuníssima: defendendo a tirania urbe et orbi, Amado tornou-se bilionário com seus panfletos em louvor do fascismo eslavo e passou a julgar-se um campeão na luta pela libertação dos povos. O baiano caiu na vida através de Raquel de Queiroz, que por muito tempo usufruiu dos juros de sua militância.

Raros foram os escritores no Brasil - e mesmo na América Latina - a intuir o caráter totalitário e opressivo da nova religião. No Brasil, por exemplo, o primeiro a fazer esta denúncia foi Pagu, a Patrícia Galvão, musa da suposta revolução literária que a USP batizou como modernismo brasileiro. Pagu viveu mais tempo em Moscou que os turistas desejosos de crer na nova fé e, ao voltar, contou o que viu. Pagou o preço de sua audácia. Na prisão, sofreu mais com a tortura mental de seus companheiros de cela que com a polícia do Estado Novo. Deixemos de lado um Gustavo Corção: embora fossem procedentes suas denúncias, lutava em nome de outro totalitarismo, o católico.