¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, abril 28, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XI)


Olhando de longe aquela polêmica, vejo que na época já intuíamos o que hoje é evidente. O marxismo é filho bastardo do cristianismo, reconhecido tardiamente pelo progenitor. Que o digam os sedizentes teólogos da libertação. Quando Dom Paulo Evaristo Arns ou Leonardo Boff ou frei Betto elogiam o ditador Fidel e seu regime, fica evidente que, na América Latina, em sua "opção preferencial pelos pobres", a igreja assumiu no Brasil o caminho do obscurantismo e da inquisição.

Estas brigas foram o melhor legado de Dom Pedrito. Com elas inauguramos uma quebra de hierarquia. Não interessava a idade ou o suposto saber de nossos adversários. O que pesava era a lógica, os argumentos. Hoje, teria de rever aqueles artigos – meus recortes foram queimados por minha mãe, como também muitos livros, questão de manter o filho saudável e em liberdade – para saber se estavámos dizendo bobagens ou algo sensato. Provavelmente bobagens, mas isto é o de menos. Aqueles embates nos enrijeciam a pele para confrontos futuros. Sabíamos que verdade não era privilégio exclusivo de professor algum. Pena que muitas mães, com a melhor das intenções, queimaram muitos livros naqueles anos pós-64.

Quando em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi com sangue doce que enfrentei o professor Guilhermino César, historiador mineiro, autor de Meia Pataca, que havia roubado do Aníbal Damasceno Ferreira a descoberta do Qorpo Santo. Ao mostrar os originais do artigo em que o defendia, Aníbal chegou a assustar-se com minha "coragem". Ponho a palavra entre aspas, foi usada por ele. Para mim se tratava apenas de uma rotineira defesa do que julgava correto. Influência talvez do campo, onde a solidão da pampa individualiza as pessoas, jamais me pareceu ser necessário coragem para dizer o que se pensa.

As polêmicas pedritenses ultrapassavam as meras inquietações de adolescência. Através de nós, se manifestava naquela cidadezinha a dez mil quilômetros da Europa a velha disputa entre Roma e Moscou, entre Cristo e Marx, entre Dom Camilo e o camarada Pepone, na obra de Guareschi. Se hoje Marx morreu, não fique Cristo pensando que é eterno. Apesar de erros e desvios, guerras e massacres, a humanidade acaba encontrando as melhores soluções para seu avanço. A última década do milênio passado foi a melhor prova disto.

Mais dia menos o poder do Vaticano desmorona, ou pelo menos reduz seus círculos. Assim como marxismo hoje não passa de um verbete de enciclopédias, mais século menos século alguém terá de consultar um dicionário para saber o que é cristianismo. Não é possível que numa era dos satélites e computadores, da aviação e do turismo, um ser pensante continue acreditando no cabaço de Maria. Tampouco há Maomé que sobreviva a uma antena parabólica. Os países árabes sabem disto e vêem a televisão ocidental como algo muito mais perigoso que o livro.

A dinâmica destas polêmicas me levou a uma ambiência mais arejada, os cabarés da cidade. De nosso grupo eu era o carola por excelência, certamente o único a não conhecer mulher nem freqüentar a zona. Inexoravelmente, fui cair lá. Não por razões de ordem sexual. Ainda tinha medo do bicho-mulher, e sequer um centavo para fretá-las. Nossas mães detestavam ver-nos reunidos num quarto lendo e discutindo, dali nada poderia sair de edificante. Mais ou menos corridos de casa, tínhamos o footing na praça General Osório para trocar idéias. Mas o footing –saudades daquela época, quando as pessoas iam às ruas para ver o rosto dos semelhantes!– tinha hora para acabar, depois restava o bar do Santinho. Como também o Santinho tinha hora para dormir. Depois só restavam as putas. Com o escasso dinheiro para algumas cervejas, nos instalávamos naquelas casinhas de eterna luz vermelha na porta, para discutir filosofia, religião e reforma agrária.

Com o tempo, em final de noite, as moças postaram uma atalaia na janela. Mal despontávamos na esquina, elas fechavam a casa: "lá vêm os filósofos, deles não sai um vintém". Sempre que vou a Dom Pedrito, procuro revisitar estas casas, certamente as tribunas mais abertas da cidade. Nada de original, velha tradição helênica. Na Grécia antiga, o debate intelectual ocorria não nos lares, mas nos lupanares.

Mais contemporaneamente, o rei Ludwig I, nomeou Margaret Trautmann como ministra da Cultura e das Artes da Baviera. Esta senhora, longe de ser uma acadêmica, administrava um bordel em Munique. Quando o ministro da Justiça mandou fechar a casa, Trautmann pediu uma entrevista ao rei. Alegou que sua casa era um ponto de encontro de poetas e artistas, nobres e políticos, que lá se reuniam para cultivar o espírito, claro que sempre na boa companhia de suas pupilas. Ludwig não hesitou. Ordenou a reabertura da empresa e a nomeou ministra. Não pretendo comparar um prostíbulo da fronteira gaúcha com uma casa galante da Baviera, durante o reinado de Ludwig. Mas sempre encontrei mais inquietação de espírito e abertura mental nos bordéis do que em qualquer reunião familiar. Em família, normalmente as pessoas mentem. Aos prostíbulos, vamos para fugir da mentira.

Falar nisso, revisitei há pouco Dom Pedrito. Amigos dos velhos tempos manifestaram o desejo de reler aquele meu primeiro conto, que me valeu a expulsão da cidade. Gente mais nova, que só ouviu falar do assunto, gostaria de conhecê-lo. Foi publicado em 1968, no Correio do Povo, de Porto Alegre, quando eu tinha 21 anos, mas escrito dois anos antes. No próximo post, o conto. Com todas as deficiências de quem mergulhava, pela primeira vez, nesse vício da escritura.