¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, março 24, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (IX)

Eu já vivia em Porto Alegre. Certo dia, voltei a Dom Pedrito, para buscar o que para mim julgava ser meu direito líquido e certo. Só eu a merecia, e mais ninguém. Para evitar agressões, encontrava-a nos lugares mais públicos e expostos ao olhar de todos. Vontade atroz de beijá-la, apertá-la, mas evitava até mesmo pegar-lhe a mão. A cidade não permitia. Com Ela, fui encontrar-me de fato em Porto Alegre. Foram daqueles dias aos quais só damos valor depois de passados. Eu acordava de madrugada, para enrolar-me n'Ela tão logo sua companheira de quarto saía para o trabalho. No ônibus, sentia-me eleito dos deuses, ao lado de operários com rostos amarrotados por um sono ruim, dirigindo-se azedos à rotina diária de um trabalho extenuante e mal pago. Lépido e faceiro, barbeado e perfumado, jovem e vencedor, eu rumava ao paraíso.

Foi bom enquanto durou. Para mim, continua sendo bom. Suponho que para Ela também. Concluímos um dia que, em função de mesquinharias de sua família, a separação era a melhor solução para os dois. Eu a adorava. Mas casamento, nem pensar. Era uma instituição cristã e dos cristãos eu só queria distância, muito me havia custado libertar-me deles. Nos despedimos após uma noite toda chorando, abraçados um ao outro em uma escadaria próxima à Duque de Caxias, em Porto Alegre. De novo aquela sensação que me acometeu ao libertar-me da idéia de Deus. Sem Ela, o mundo perdia o sentido. Ela era muito melhor que Deus, eu a apertava, acarinhava, Ela era não só espírito mas também carne, carne cor de jambo. Custei a reerguer-me, a me convencer que havia outras mulheres a meu lado, inclusive minha Baixinha, também namorada daqueles dias. Como ocorre com toda dor de dente, esta também passou. Quer dizer, passou em termos. Mal lembro d'Ela, me bate de novo a nevralgia. Saudade brutal daquela guarani de voz quente que me sussurrava: xemboraihu (meu querido).

Como terapia para a dor-de-cotovelo, andei rabiscando algumas linhas, só mostradas a amigos muito próximos. Vivíamos dias duros em Porto Alegre, morando em repúblicas, sem muitas vezes ter os centavos necessários para o almoço do dia seguinte no restaurante universitário. Num destes períodos infames, um colega de quarto – mais tarde enforcou-se em Munique, em parte por falta de dinheiro para voltar – me alertou sobre um concurso estadual de contos. Primeiro prêmio, cem cruzeiros, o que nos garantiria um mês de RU. Com almoço e janta, o que já era luxo. Que tinha eu a ver com aquilo? Segundo Tibursky, minha dor-de-cotovelo era um conto. Eu achava que não, mas não custava nada mandar uma cópia. Na comissão julgadora, Paulo Hecker Filho e José Paulo Bisol. Para minha surpresa, Dom Pedrito, o pântano como fuga, recebeu o primeiro lugar, o que além de almoço e janta nos permitiu até mesmo algumas cervejas. Se aquilo era um conto, eu era capaz de escrever outros. Assim nasceu o candidato a escritor, da desastrada confluência de uma paixão mal curada e de um concurso de contos. Colecionei desafetos escrevendo, certamente mais inimigos que amigos. Aos que prefeririam me ver tocando violino ou construindo pontes, enfim, fazendo qualquer outra coisa que não seja escrever, alerto: queixem-se à Ela, a culpa é d'Ela e de mais ninguém. Se bem que o Hecker e o Bisol tampouco são inocentes.

Fim de mês, de novo o problema: como comer no próximo? Tibursky descobriu que o Correio do Povo pagava trinta cruzeiros por artigo publicado, o que nos salvava uns dez dias de RU. Havia um suplemento literário aos sábados, dirigido pelo Paulo Fontoura Gastal – o PF, para os íntimos – padrinho literário de pelo menos duas gerações de jornalistas e escritores no Rio Grande do Sul. Enfrentei o editor numa sexta-feira à noite, supondo que dali a alguns meses teria o conto publicado. Acordei assustado, o conto saiu na manhã seguinte. Era fim de noite, faltava matéria para o suplemento. Com o conto premiado por dois ilustres críticos gaúchos, Gastal baixou-o sem ler. Segunda-feira, uma expedição punitiva pedritense pedia, na redação do Correio, minha cabeça. O que durante muito tempo os pedritenses julgaram ser uma revanche contra a cidade, não passava na verdade de um exercício terápico de adolescente, conjugado com a humana necessidade de jantar e almoçar todos os dias. Não vou negar, é claro, o prazer interior que senti ao estar reptando toda uma comunidade, do alto da tribuna de um jornal da capital. Não creio que, em algum lugar do mundo, um adolescente não goste disto.

Proibido de voltar à cidade. Não havia nenhum edital do prefeito, apenas a singela promessa da comunidade de castrar em brasas o herege. A ofensa à cidade, ao que tudo indica, havia sido de ordem sexual. Eu havia roubado à comunidade a mulher que cada pedritense julgava sua. Três ou quatro anos mais tarde, quando o temporal parecia ter amainado, fui revisitar os meus. À noite, com amigos, em um de nossos refúgios na madrugada, os cabarés da Baixada da Paulina, por pouco não fui linchado. A "terrinha" sentira-se ofendida com o conto. "Tudo é uma questão de interpretação", tentei argumentar. O pessoal não se deixou enganar: "não vamos te deixar falar, falando tu nos confundes. Vamos é te bater o brim". Ex-colegas de ginásio, de repente surgidos do nada, me livraram do justiçamento: "no Janer, ninguém bate". Salvo pelo gongo. Mas tive de voltar a Porto Alegre no dia seguinte.

Incidentes que recordo com carinho. Penso ser saudável, para quem escreve, este atrito com sua comunidade. As cidades do interior são cheias de brios, não por acaso se auto-intitulam Capital do Arroz, Capital da Paz, Princesa da Serra, coisas do gênero. Estes atritos fortalecem a individualidade do escritor. As portas que se fecham obrigam-no a abrir outras. No Ocidente, bem entendido, onde apesar dos tabus e censuras há uma liberdade de expressão bastante ampla. Em país muçulmano ou comunista, o rebelde estaria na forca ou nalgum gulag. Mas estas pequenas comunidades se equivocam ao condenar e expulsar o rebelde. (Falo daquele que estuda, lê, pesquisa). Quando uma pessoa passa a criticar ou mesmo insultar sua cidade, é porque gosta dela e gostaria de vê-la transformada para melhor. Ninguém xinga uma mulher que lhe é indiferente. Olhando de hoje estas peleias, me pergunto se não havia em mim o inconsciente desejo de fechar portas, queimar navios, único recurso seguro para fugir ao risco de querer voltar. Aliás, não me pergunto. Pelo que lembro, este desejo era dos mais conscientes.

 
O AUTOR ESQUECIDO

A dúvida é o começo da ciência. Quem não duvida de nada não examina nada. Quem não examina nada, não descobre nada. Quem não descobre nada é cego e continua cego.

Jean Chardin, Journal, 1686

sexta-feira, março 19, 2004
 
A PROPÓSITO


PARASITAS

Guerra Junqueiro


No meio duma feira, uns poucos palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.

Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.

E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmolas até mendigos quase nus.
E eu, ao ver esse quadro, apóstolos romanos,

Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da cruz,
Que andais pelo universo, há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.


quinta-feira, março 18, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (VIII)


Atritos




Ela surgiu quando eu já vivia em Porto Alegre e passava as férias em Dom Pedrito. Grafo o pronome assim, com maiúscula, que Ela o merece. O nome não interessa, hoje será mãe, terá marido e filhos e talvez não lhe agrade ser citada nominalmente. Os de minha geração a conheceram, os pedritenses mais novos dela terão ouvido falar. Na verdade, surgira antes, em meus dias de Dom Pedrito. Uma das seqüelas da educação em colégio religioso, exclusivamente masculino, é a visão da mulher como um ser de outro planeta. Durante vários anos, tive, tivemos, uma dificuldade atroz na hora de se aproximar de uma mulher e manifestar-lhe o que sentíamos.

Era uma época pré-televisiva e o lazer noturno dos pedritenses consistia no footing em torno à praça General Osório. Das oito à meia-noite, duas correntes humanas percorriam o contorno da praça em sentidos opostos. No entrecruzar de olhares se geravam namoros, ciúmes, casamentos. Nossa distância era tamanha em relação ao outro sexo, que fazíamos apostas em dinheiro para ver quem tinha coragem de abordar uma menina. O pior é que depois de um ridículo "posso acompanhá-la?", nada mais se tinha a dizer, e o footing se tornava um inferno de mudo e mútuo constrangimento.

Levamos bons anos para superar esta deformação. Quando Ela surgiu, oriunda do Mato Grosso, com sangue índio nas veias, sua presença me perturbou, aliás perturbava todos os pedritenses. Locutora da rádio Upacaraí, era onipresente não só na cidade como em toda Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Duvido que, mesmo hoje, pedritense de minha idade tenha esquecido sua voz quente e carinhosa, invadindo campo e cidade, lares, bares e bordéis.

Não poderia dizer minha primeira mulher, pois comecei apaixonado por duas. Por Ela e pela minha Baixinha adorada, que até bem poucos meses me acompanhava. Eram os anos 60, da liberação sexual no país, das leituras de Sartre e Simone de Beauvoir. Casamento e monogamia nos soavam como instituições medievais. Em Porto Alegre, este tipo de relacionamento, se não era usual pelo menos não constituía crime. Em Dom Pedrito, nem precisava ser ménage à trois. Bastava que o casal não fosse legalmente casado e caía nesse círculo de maledicência inerente às pequenas comunidades, onde homens e mulheres, presos à monotonia do casamento, não suportam a idéia de ver uma mulher livre, elegendo um homem sem o ônus dos filhos e vida doméstica.

Em casa, a vigilância dos pais. A mãe d'Ela tornava-se roxa ao ver-me, perdia a fala e espumava, eu temia que a velha guarani tivesse uma síncope. Na praça, a vigilância dos pedritenses, a vontade do abraço ficava na mera vontade, o máximo permissível na época era andar de mãozinhas dadas. Em um período de férias, já mais familiarizado com o bicho-mulher, tomei coragem e enfrentei-a. Nos refugiamos, num pôr-de-sol, no Parque de Exposições Rurais. Ela – que teria dezenas de amantes, segundo a crônica local – era uma menina tímida que sequer havia sido beijada na boca. Sem que nada além disso ocorresse naquela tarde, o parque foi invadido por gentes da vizinhança, gritando atrás das árvores ou casas: "Vai comer aqui ou quer que embrulhe?", e agressões do gênero. Tivemos de abandonar nosso oásis provisório, para fugir ao risco de agressões físicas. Vaiados ao longo da avenida Rio Branco por dezenas de famílias escondidas atrás das janelas, fomos acuados como cães inconvenientes pelo pecado de alguns beijos ao entardecer.

segunda-feira, março 15, 2004
 
MARÇO EM MADRI



O atentado teve características modernas. Pela primeira vez na história do terror, tivemos o espetáculo surreal de dezenas de celulares tilintando nos corpos dos cadáveres.

Há um certo tipo de vespa, chamada escavadora, cuja fêmea deposita os ovos fecundados em um sulco exaustivamente cavoucado e, junto com os ovos, deposita também no sulco a nutrição destinada às futuras larvas. Depois recobre tudo e volta periodicamente a visitar o ninho submerso.

Ocorre às vezes que uma outra fêmea, na sua ausência, deposite os seus ovos e nutrição em um sulco muito próximo, ou quase no mesmo sulco. Em tais casos se desencadeia uma luta furibunda entre as duas fêmeas, que continua até que uma delas abandone para sempre o ninho submerso. A fêmea vencedora não é aquela que depositou no ninho mais ovos que a outra, nem a mais robusta nem a maior das duas. A mais combativa, e por isso vencedora, é quase sempre aquela que mais trabalhou na escavação e que depositou no ninho mais alimento para a prole. Submerso é, pois, não só o ninho, mas o investimento em trabalho e material que isso representa.

Escrevi isto há quatro anos, para tentar explicar as ações do ETA. Os bascos têm uma autonomia política invejável, gozada nem mesmo pelas Länder na Alemanha, com idioma, escolas e polícia própria. Mesmo assim, alguns celerados continuam matando, com pistolas, bombas e carros-bomba, desde militares, políticos e autoridades a pessoas comuns – e estas constituem a maioria dos assassinados – na luta por um Estado próprio. Agora não há como parar, me dizia um amigo basco. Pesa muito o sangue todo derramado. Em suma, a lei do esforço submerso. Já que assassinou quase um milhar de espanhóis em suas três décadas e meia de trajetória, o ETA tem de vencer.

Leitores me cobram, perguntando se não vou escrever sobre o atentado em Madri. Escrever o quê? Encher uma página reiterando a infâmia do terrorismo, deplorando os mortos, clamando por punição? Isto é o que está fazendo a imprensa do mundo todo. Exceto, bem entendido, alguns panfletos sem crédito algum, que sempre defendem o terror.

Caberia, isto sim, relembrar as insuspeitas origens do grupo terrorista, que jornal brasileiro algum ousa lembrar. Os bascos são profundamente católicos, escrevi na época. O ETA, como poderia parecer à primeira vista, não se origina na filosofia sangrenta dos marxistas, embora a tenha adotado. Apesar de ter recebido treinamento na Argélia, nasceu em igrejas e seminários. Tem a proteção da cúria e clero basco e em sua lista de anjos tutelares estão padres, bispos, cardeais e mesmo um papa. Monsenhor José Maria Setien, bispo de San Sebastian e o cardeal Enrique Vicente y Tarancón foram ardorosos defensores dos terroristas etarras. Este último cardeal defendeu junto ao Vaticano uma clemência papal para onze condenados à pena capital, e Paulo VI ameaçou excomungar Franco e mais 31 autoridades do governo caso levasse a condenação a cabo. Se os etarras contam com a benevolência até mesmo do Vaticano, conseguem matar com a serenidade dos justos.

Há quem atribua o atentado à Al-Qaeda. É uma lógica interessante. No dia 31 de dezembro de 2000, dois etarras transportavam 130 quilos de explosivos para Madri, com os quais pretendiam cometer vários atentados naquela tarde, em diversos centros comerciais da capital. Foram capturados pela polícia.

Nas vésperas do Natal passado, dois outros terroristas da ETA foram presos com 50 quilos do explosivo titadine, que se preparavam para explodir a estação ferroviária de Chamartín. Uma das bombas foi embarcada no trem Intercity, de Irún a Madri, que foi detido na estação de Burgos, onde o artefato foi desarmado. O trem chegaria a Madri às 15h12. Um segundo pacote bomba foi encontrado no mesmo trem, antes de partir de San Sebastián. Estava programado para explodir às 15h55, 40 minutos após a chegada do trem na estação de Chamartín.

Neste 11 de março, 13 bombas explodiram em quatro trens, matando 200 pessoas e ferindo 1.500. Donde se conclui que a responsabilidade do atentado é da Al-Qaeda. O silogismo é, no mínimo, original. O ETA fracassa em duas tentativas letais de massacre. Quando acerta, a responsabilidade é dos árabes. Admitamos até mesmo que a Al-Qaeda tenha a responsabilidade do atentado. Nada mais fez senão uma sinistra gentileza aos confrades do terror, ao consumar um massacre dos bons, há muito planejado pelos etarras.

A grande imprensa, mesmo manifestando sua sagrada indignação contra o terror, tem suas simpatias pelo ETA. As esquerdas do Ocidente sempre olharam com olhinhos cúmplices para o terrorismo de esquerda, não importa em qual país ocorra. Quem não lembra a carta de Hebe de Bonafini, a líder das Madres de la Plaza de Mayo, apoiando o terror basco? Aliás, esta senhora, foi uma das primeiras a louvar o atentado às torres gêmeas. Assumir o atentado como sendo obra do ETA, seria dar força ao primeiro-ministro José Maria Aznar nas eleições deste domingo, logo a Aznar que vem lançando um ataque devastador contra o terror na Espanha.

Os que hoje querem atribuir o atentado à Al-Qaeda, são os mesmos que no 11 de setembro de 2001 aplaudiram a Al-Qaeda pelo atentado em Nova York. Já que o terror muçulmano se orgulha de grandes carnificinas, põe-se em sua conta o 11 de março em Madri. Este débito não vai prejudicar em nada a sólida imagem da organização. Ao mesmo tempo, salva-se a cara de nossos terroristas domésticos, cá do Ocidente, heróicos militantes por uma pátria própria, que contam inclusive com o insuspeito apoio da Santa Madre Igreja Católica. Melhor ainda, com o apoio do guru das esquerdas ocidentais, el Líder Máximo del Caribe, comandante Fidel Ruz Castro, que recusou-se a assinar uma declaração de repulsa ao terrorismo – particularmente ao ETA – na última reunião de cúpula dos países ibero-americanos, realizada há três anos no Panamá.

Leia-se o manifesto em que a Al-Qaeda reivindica o atentado. Após um protocolar “Em nome de Deus, clemente e misericordioso”, o resto todo do texto é de estilo obviamente ocidental. Ou alguém imagina que um texto árabe comportaria uma expressão tão prosaicamente nossa como “Agora, colocamos os pingos nos is”?

Desde o 11 de setembro, esperava-se um atentado de porte nas capitais européias. Paris, Londres e Roma, por serem alvos mais emblemáticos, viviam desde então períodos de tensão. As comportas estão agora abertas para o terror. Como impedir que psicopatas plantem quilos de dinamite em centrais de metrô como Puerta del Sol ou Chatelet? Ou mesmo nos terminais rodoviários das capitais européias? Controlar cada passageiro que entra em cada estação de metrô ou trem? Impossível. Massacres espetaculares nos esperam nos próximos anos.

Os terroristas bascos – ou muçulmanos – optaram por capitalizar o sangue. A História passa a ter um trágico sentido: mate à vontade e a vitória será sua. É a filosofia das vespas escavadoras. Ocorre que estas vespas travam um combate singular, onde há apenas um ou dois adversários. Diferente é lutar contra Estados organizados. Hoje, as bodegas, restaurantes, teatros e shoppings de Madri já estão repletos, como se nada tivesse acontecido. O assunto será um só, é claro, e um vago sentimento de medo estará pairando no ar. Mas o ser humano se adapta a tudo, até mesmo ao medo.

Da mesma forma Nova York. Salvo a dor dos parentes das vítimas, a vida continua. Os psicopatas podem matar à vontade. Provocam sofrimento, é verdade. Mas jamais desestabilizarão os Estados do Ocidente.

Os socialistas venceram as eleições deste domingo. Não podem negar que os 200 cadáveres foram providenciais.

domingo, março 07, 2004
 
MORRE UM POBRE DIABO


Acaba de morrer um mitômano, que nasceu em berço de ouro e jamais fez algo útil na vida. Em suas memórias, gaba-se de ter tido mulheres deificadas pela mídia. “Meus casos com Marilyn Monroe, Rita Hayworth, Jane Mansfield, Romy Schneider, Kim Novak, Susan Hayward aconteceram com naturalidade”. Com a naturalidade – é bom salientar – de quem confessa ter gasto, ao longo da vida, mais de 20 milhões de dólares com caviar e champanhe para seduzi-las. De uma penada, Jorginho Guinle as coloca todas no rol de vulgares prostitutas.

Colunistas de todos os jornais se babam de inveja ao comentar a vida de Guinle. São outros mitômanos, tão pobres de espírito quanto o playboy tupiniquim. Para passar pela cama de uma mulher que se deixa seduzir por dinheiro, basta ter dinheiro. Conquistador sou eu, ora bolas. Sem ter nenhum vintém, cultivei não poucos afetos em minha vida. E se fui amado, não foi por oferecer jóias, caviar ou champanhe, muito menos por ostentar milhões de dólares. Tampouco jamais corri atrás de mitos hollywoodescos. Sempre procurei as mulheres mais próximas de mim, algumas lindas, outras nem tanto, mas todas adoráveis e muito queridas ao serem abraçadas.

Outro dia, conversando com gente mais moça, um deles me perguntava: tu que viajaste, qual é a mulher mais linda do mundo? Caí em prantos. A mulher mais linda do mundo, consegui balbuciar, eu a conheci. Foi a que me acompanhou por quatro décadas e agora acaba de partir. Duvido que no mundo tenha existido mulher mais linda.

Sim, a mulher mais linda eu conheci. Não nutro inveja nenhuma por este pobre diabo, que valia não por algum valor que tivesse, mas pelos dólares que tinha.

quinta-feira, março 04, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (VII)

Mais tarde, um pouco antes de perder a fé, militei na Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Universitária Católica (JUC). Os religiosos que nos orientavam eram mais abertos, desciam do púlpito e não se escondiam atrás das grades dos confessionários para enfrentar os jovens. O conflito sexual persistia. Em Santa Maria, eu apertava o padre Carlos Pretto contra a parede: "Se mulher é tão bom, por que é proibido?" Pretto armava uma longa história, de final curto e grosso. Que não devíamos ir para a cama com uma mulher por amor a ela. Nada mais fácil para um crente do que inverter uma evidência. De minha parte, era por amá-las que as queria na cama.

Mas Pretto não era de ferro, e as militantes de JEC e JUC, secundaristas e universitárias cheias de charme e desejo, fizeram um excelente trabalho de sapa. Mais adiante Pretto já ousava heresias desde "mulher e religião não se discute, se abraça" a outras do tipo "se batina fosse bronze, que badaladas!". Os sacerdotes que desceram do púlpito para falar conosco acabaram largando a batina, casando e fazendo filhos. Foi nossa revanche a longo prazo. Pau duro não tem amigo, dizia meu pai. Muito menos fé, acrescentaria eu.

Naqueles dias de férias no Upamaruty, mal despontava uma tempestade, eu montava um cavalo em pêlo e o esbarrava frente às casas de meus tios e primos, espalhados num raio de várias léguas. Se caía um raio, eu berrava: "Manda outro, grande Filho da Puta!" Era uma forma de manifestar minha revolta ante o engodo. Tios e primos, camponeses que viam em Deus algo assim como um gestor das chuvas e raios, cobriam espelhos com panos, escondiam tesouras e facas de ponta e se persignavam assustados. Ensopado pela chuva, mais ou menos ébrio sem ter bebido nada, eu exercia minha liberdade recém-conquistada. Claro que se um raio atingia algum eucalipto mais alto, o culpado era este herege. Quando tive melhores noções de eletricidade, no curso científico, gelei ao perceber minha temeridade. Galopando na pampa deserta e junto a umbus e alambrados, minhas chances de receber um raio eram bem maiores do que imaginava. Pior ainda: acabaria dando razão ao suposto gestor dos raios.

Revoltas da adolescência. Hoje, jamais me divertiria às custas da fé dos simples. Gosto de reptar, isto sim, a fé dos cultos. Ninguém me convence que um Karol Wojtyla ou um Evaristo Arns, lidos, cosmopolitas e dominando várias línguas, acreditem naquele Deus sedento de sangue nascido no deserto.

Assumida minha condição de ateu, gozo particularmente uma de suas vantagens, o senso de mistério. Para o crente, tenha caído um avião em sua cabeça, ou tenha acertado na loteria esportiva, tudo é normal, já estava escrito: foi Deus quem quis. Para o ateu, tudo é mistério e em boa parte obra do Acaso. Fosse crente, não me surpreenderia ter saído das grotas para viver em Estocolmo ou Paris, seria determinação das altas instâncias celestiais e teria sido por isso que Deus me apresentou a uma professora de francês. Ateu, até agora estou surpreso com meu passado e curioso com os dias que me sobram. O homem de fé jamais vai experimentar esta excitação que contamina o ateu, a de ver o amanhã como um mistério permanente.

A primeira surpresa ocorreu ainda no campo. Estudei em escola rural, a uma légua de casa, a cada rancho na beira da estrada o grupo de crianças aumentava. No inverno, saíamos de pés nus quebrando geada, as alpargatas debaixo do braço para não ficar de pés molhados durante as aulas. Em uma sanga antes do colégio, lavávamos os pés, e só então se calçava as alpargatas. Mais tarde meus pais compraram um aranha, eu me sentia quase adulto ao ajudar a atrelar um tordilho percherão. Da confluência desta aranha e do tordilho, mais Ivone Garrido, uma professora de Dom Pedrito, dependeram minhas futuras andanças.

As professoras do primário nos ensinavam fundamentalmente a ler, escrever e contar. Poucas noções tínhamos de outras disciplinas. O que, visto de hoje, já foi muito. Não poucos universitários, hoje, desconhecem tabuada. Na hora de conferir uma conta, puxam uma maquininha de calcular. Volto ao Grupo Escolar de Três Vendas. No quinto ano primário, com escassas noções de história ou geografia, fomos informados que professoras "da cidade" viriam fiscalizar as provas. Pânico total de nossas professoras. Fora escrever e as quatro operações, mais alguns poemas cívicos, ninguém conhecia muita coisa além disso. Mas para tudo há solução. As provas chegaram numa sexta-feira. Numa época em que sequer havia rádio na região, fomos todos convocados – sei lá como, suponho que à pata de cavalo – num raio de léguas, para uma aula no domingo. Violadas as provas, recebemos as respostas para decorar.

Dia seguinte, as fiscais de Dom Pedrito constatavam, boquiabertas, a excelência pedagógica de nossas mestras. Os alunos escreviam tranqüilos, sem hesitar um segundo, foi nota dez pra todo mundo. Minha mãe era professora e claro que cúmplice. Mas não muito. Sempre exibiu uma vara de marmelo quando eu me recusava a estudar. Não só exibia como tampouco foi avara ao aplicá-la. Naquela segunda-feira, minha sorte estava selada. Findo o curso primário, bom em matemática, o máximo que podia aspirar era ser caixeiro nalgum bolicho das Três Vendas ou Ponche Verde, uma das poucas chances de escapar ao rabo do arado. Findas as provas, atrelei o tordilho à aranha. Uma fase havia terminado em minha vida. Voltava ao campo, talvez para lá morrer.

Dei de rédeas ao tordilho, a aranha já descia o lançante da coxilha. Foi quando Dona Ivone Garrido, a fiscal implacável, já de certa idade e não muito ágil, atravessou um alambrado de sete fios que cercava o colégio e gritou: "pára, Clotilde, teu filho é um gênio, ele não pode voltar para o campo". Minha mãe, que só queria ouvir isto, me tomou as rédeas das mãos e esbarrou o tordilho. Daqueles segundos geridos pelo deus Acaso – e aqui começa o mistério – decorrem minhas andanças e estas linhas.

segunda-feira, março 01, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (VI)

O choque anafilático ocorreu na primeira reunião que participei no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas. Duas alunas, quartanistas de Letras, pediam ao Departamento um professor para explicar-lhes o que era sujeito e predicado, que até então elas desconheciam o que fosse. Perplexo, eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo, nem como elas haviam sido admitidas na universidade. Pior ainda, estavam se formando e já praticamente habilitadas a exercer o magistério.

Nestas ocasiões, sempre costumo evocar o professor Hugo Brenner de Macedo, dos dias de ginásio em Dom Pedrito. Certa vez cortou dois pontos numa prova de geografia, só porque um aluno escreveu feichão. Fizesse isto em Florianópolis, talvez nem dez por cento de meus alunos da universidade chegassem ao final de um semestre. Ainda em geografia, lembro do professor Hugo: "isso aí de rios, lagos, montanhas e cidades, vocês olham nos livros, está tudo lá. Nós vamos falar do que realmente importa, a geografia econômica, o empenho das nações pelo seu abastecimento, as trocas e lutas geradas pela necessidade de comer". Acabou cassado pelos militares.

Apesar do dogma e do catecismo, impostos a martelo, o Patrocínio forneceu a seus alunos uma educação de elite. Sempre me sinto um pouco dividido ao falar dos padres que foram nossos mestres. Por um lado, eram europeus arrogantes, déspotas esclarecidos. Sentiam-se como seres de uma civilização superior trazendo luzes aos silvícolas. (Luzes de uma galáxia extinta, medieval, não as luzes da Europa moderna). Por outro, com eles aprendi línguas, tive janelas abertas para o mundo. Os livros que nos proibiam sempre constituíram indicações bibliográficas excelentes, garantia de boas leituras. Em Santa Catarina, tentei usar este recurso, por vezes desaconselhava vivamente um livro, com certa indignação, para ver se os alunos o liam. Lá na ilha, nem assim deu certo.

Ao defender tese em Paris, não pude deixar de evocar Maria Veiga Miranda, que me introduziu com carinho quase materno nas guturais do francês. Não terá sido por acaso que este clima pedritense produziu um dos mais ágeis poliglotas brasileiros, o Carlos Freire. Na penúltima vez que falei com o Freire, ele já dominava cerca de quarenta línguas, que iam do ioruba ao swahili, passando pelo russo e árabe, chinês e ucraniano. Nestes últimos anos, o professor gaúcho se dedicou a um empreendimento insólito em língua portuguesa e mesmo nas demais línguas, a tradução de sessenta poemas de sessenta idiomas diferentes. A antologia está pronta e espera editor.

Falava da Bíblia. Em umas férias no Upamaruty, me encerrei por uns três dias no quarto de nosso rancho, Bertrand Russel de um lado, a Bíblia de outro. Teria uns quinze anos. Meus pais achando que eu havia "treslido", como ocorreu com Don Alonso Quijana. Comia no próprio quarto. Só saía forçado por necessidades fisiológicas ou para cavalgar na madrugada, sob um céu crivado de estrelas, que ao homem urbano não é dado ver. Naquelas plagas, tal comportamento não era exatamente sinônimo de higidez mental. Cavalo é instrumento de trabalho, meio de transporte, não pretexto para desvarios metafísicos.

Ao final dos três dias, estava livre de Deus e de todo pacotaço ético que os padres carregam sob o sovaco. A Bíblia era um livro muito maior do que pretendiam os catecismos do Vaticano, sempre preocupados em controlar a vida sexual dos católicos, perversão papista que até hoje, às portas do novo milênio, continua sendo a pedra de toque de João Paulo II. Foi doloroso no início, naqueles dias havia morrido em mim qualquer esperança de paraíso, vida eterna, transcendência. A vida perdeu todo e qualquer sentido e andou me rondando a idéia de suicídio. O que também era absurdo. Se a vida não tinha sentido, a morte muito menos. Algo assim como uma nevralgia prolongada. Como toda dor de dente, acabou passando.

A libertação do cristianismo deveu-se em boa parte à sexualidade submetida a uma camisa de força. Os catequistas nos haviam instalado na cabeça uma maquininha de tortura, a noção de pecado, fundamentalmente ligada ao prazer sexual. Mal cometíamos um "pecado contra a carne", a maricota começava a girar: ofensa ao Cristo, transgressão da lei divina, medo da morte e dos tormentos do inferno, arrependimento e contrição, votos de não mais pecar. Dia seguinte, pecado de novo. Já que havia pecado uma vez, aproveitava para pecar outras, que a absolvição valia para todas. Autoflagelação imediata: a cada masturbação ou relação sexual, um sentimento de medo e desespero me levavam correndo ao confessionário. Particularmente após uma noite de tempestade. Pode parecer megalomania, mas os raios, evidentemente, só podiam ser dirigidos a mim, pecador.

Os padres queriam detalhes, o interrogatório era basicamente obsceno. Hoje, entendo melhor a psicologia dos confessores. Adulto, me descobri um dia falando baixinho com uma parceira, em um momento de muita excitação, sem ter razão alguma para falar baixinho. Por algum mecanismo qualquer da mente do bicho-homem, naquela hora em que a pele do peito começa a avermelhar, a tendência é sussurrar. Hoje, entendo aqueles sussurros em meio à luz macia das igrejas. Eles eram os precursores do sexo por telefone, os castos oblatos.

A tensão insuportável daquela sucessão de gozo e medo, transgressão e arrependimento, humilhação ante o confessor e alegria da absolvição, é tortura que não desejo a ninguém, como tampouco dela absolvo meus algozes. Nestes dias em que tanto se fala de direitos humanos, algum dispositivo qualquer deveria punir como crime contra a humanidade este vício inquisitorial de sacerdote, o de instalar o sentimento de culpa no cérebro de uma pessoa, para que esta se torture a partir de qualquer transgressão a uma ética doentia, inimiga do prazer. Ocorreram dois suicídios inexplicáveis de ginasianos do Patrocínio naquela época, e hoje me pergunto se atrás deles não estariam estes instrumentos de tortura mental.